Em julgamento recente, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), em linha com os precedentes atuais, proferiu mais uma decisão que privilegia a liberdade contratual e respeita aquilo que for pactuado de maneira privada. Trata-se do Recurso Especial nº 1.904.252/RS[1] (“RESP”), apresentado por sócia excluída (“Recorrente”) de sociedade empresária limitada (“Sociedade”), no âmbito de uma ação de dissolução parcial.
Em síntese, o pedido formulado pela Recorrente no RESP envolvia a inclusão dos lucros futuros da Sociedade na apuração de seus haveres, o que nada mais é do que a aferição do quantum devido pela empresa deve ao sócio que dela se desliga. Diante disso, a discussão desenvolvida no RESP centrou-se nos critérios destinados à definição desse “quantum”, vez que existe discussão jurisprudencial em torno do tema.
O entendimento que predominou na jurisprudência nacional até 2021 foi o de que, na omissão do contrato social, a metodologia de fluxo de caixa descontado seria a mais apropriada para se aferir a remuneração devida a sócio retirante[2]. Tal método consiste em estimar o valor atual da empresa com base em projeções financeiras futuras[3].
Contudo, referido entendimento veio a ser superado com o julgamento do Recurso Especial 1.877.331/SP[4], no qual foi decidido que, na omissão do contrato social, o fluxo de caixa descontado não seria o critério mais adequado. Mencionada decisão tem por fundamento o fato de que a estipulação dos rendimentos futuros realizada no fluxo de caixa descontado é feita com base em expectativas e provisões subjetivas, inexatas, e que não necessariamente serão verificadas na realidade, o que prejudicaria a aferição dos haveres.
Essa mesma decisão também demonstrou, por outro lado, uma tendência de orientação do STJ em direção à observância do que for pactuado entre os sócios de uma sociedade. Seguindo essa linha, a decisão adotada no RESP, analisada neste artigo, não só reiterou o referido posicionamento, como o abordou de forma mais ampla e em termos mais explícitos, como se pode ver na ementa do acórdão: “A apuração de haveres – levantamento dos valores referentes à participação do sócio que se retira ou que é excluído da sociedade – se processa da forma prevista no contrato social, uma vez que, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade”.
O que diferencia, no entanto, as decisões emitidas nos acórdãos citados no parágrafo acima é o fato de que o posicionamento adotado no âmbito do RESP parece ainda mais extensivo no sentido da observância ao conteúdo dos contratos sociais, na medida em que estabelece que os possíveis rendimentos futuros de uma sociedade só devem ser levados em conta para fins de apuração de haveres se o contrato social assim dispuser.
Nos termos do acórdão, tal entendimento está alinhado com a legislação atual acerca do tema, especialmente o artigo 606 do Código de Processo Civil[5] e o artigo 1.031, caput, do Código Civil[6]. De acordo com a fundamentação do RESP, na omissão do contrato social, o critério a ser utilizado no levantamento dos haveres de um sócio retirante deve ser o balanço de determinação, método por meio do qual passivo e ativo (tanto bens corpóreos quanto incorpóreos) são avaliados a valor de mercado, mensurando-se, assim, o acervo líquido da sociedade, tal qual ela estivesse sendo totalmente dissolvida naquele momento. Como se pode ver, trata-se de um procedimento que comporta um nível de complexidade não desprezível, haja vista que pode demandar, inclusive, a realização de perícia para a avaliação dos bens da sociedade.
Embora seja naturalmente bem-vinda uma decisão que privilegia aquilo que seja acordado entre partes, com o respaldo da lei, a argumentação explorada nela poderia ser mesmo assim objeto de crítica, dado que para tanto equipara a dissolução parcial para um sócio à dissolução total de uma sociedade. No caso da dissolução total, está se falando do fim da vida de uma empresa, o que não é igual ao que se vê na dissolução parcial, em que a sociedade continuará existindo e podendo auferir lucros. No mesmo sentido, o método apontado pelo RESP também pode ser questionado quanto à apuração de haveres em empresas de serviços que distribuem todos os lucros que auferem, casos em que as empresas não raramente são consideradas de valor substancialmente maior do que o seu conjunto de ativos e passivos.
Ainda que haja argumentos contrários à fundamentação do RESP, reiteramos que vemos com bons olhos o fato de que a decisão continuou aderente àquilo escrito no contrato social e, na omissão deste, às normas aplicáveis, algo que é positivo do ponto de vista da segurança jurídica. Tendo em vista as observações acima, mostra-se importante tomar muito cuidado na redação das cláusulas de um contrato social, para que a apuração de haveres seja feita da maneira mais adequada, considerando a realidade da empresa, a relação entre os sócios e suas expectativas na eventualidade do término da sociedade, mesmo que apenas para um sócio.
[1] Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202002910230&dt_publicacao=01/09/2023>.
[2] Conforme consolidado pelo Recurso Extraordinário 89.464/SP do Supremo Tribunal Federal.
[3] REDAÇÃO XP EDUCAÇÃO. Fluxo de caixa descontado: o que é e como calcular. Disponível em: <https://blog.xpeducacao.com.br/fluxo-de-caixa-descontado/#:~:text=Basicamente%2C%20o%20fluxo%20de%20caixa,ela%20ser%C3%A1%20lucrativa%20no%20futuro.>. Acesso em: 28 nov. 2023.
[4] O referido julgado foi abordado pelo escritório em artigo pretérito, intitulado “STJ altera entendimento sobre o método a ser utilizado na apuração de haveres em dissolução parcial de sociedades limitadas”. Disponível em: <https://www.vidigalneto.com.br/artigos/stj-altera-entendimento-sobre-o-metodo-a-ser-utilizado-na-apuracao-de-haveres-em-dissolucao-parcial-de-sociedades-limitadas>.
[5] CPC Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.
[6] CC Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.