Em julgamento de procedimentos administrativos sancionadores[1] iniciados em agosto e concluídos no início do mês de novembro em função de um pedido de vista (“PASs”), a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) protagonizou o mais recente capítulo em uma das discussões mais intensas na doutrina e prática societária. A questão é: o conflito de interesses de sócios e administradores em deliberações societárias decorre de uma situação objetiva e de constatação prévia, ou de uma análise subjetiva posteriormente à deliberação? Em outras palavras, o conflito de interesses tem natureza formal ou material?
O tema é arduamente debatido há décadas pela CVM, sendo que o entendimento da autarquia já transitou entre as duas vertentes mencionadas algumas vezes, sendo a última vez em 2010 quando optou por adotar teoria formal do conflito. Entretanto, com a natural rotação dos membros da CVM, o colegiado mais uma vez alterou seu posicionamento – mesmo que não de forma unânime – liderado pelo relator dos PASs, o Diretor Alexandre Costa Rangel, defensor da utilização da teoria do conflito de interesses material.
Neste ponto, cabem algumas considerações sobre as diferentes interpretações acerca do conflito de interesses, conforme definição trazida pelo art. 115 da Lei nº 6.404/1976[2] (“LSA”):
- A interpretação do conflito de interesses material – ou ainda conflito substancial – consiste em presumir que, escusadas as previsões expressas da LSA[3], o conflito de interesses somente pode ser apurado posteriormente a uma deliberação cujo acionista potencialmente conflitado exerceu seu voto. Esta teoria, atenta à dinamicidade dos interesses dos acionistas e da sociedade, preconiza que o controle da existência de conflito de interesses deve ser feito mediante análise pormenorizada dos elementos do caso concreto para, ao fim e ao cabo, determinar se um acionista exerceu seu poder de maneira contrária aos interesses sociais.
- Por outro lado, o conflito de interesses formal nos leva a uma interpretação mais restritiva da LSA, na qual a verificação de conflito é realizada antes de uma deliberação para que, dependendo da conclusão, o acionista conflitado se abstenha de votar, preservando a integridade da decisão tomada. Apesar de não dispensar o exame individualizado de cada caso, o conflito formal retira a presunção de validade do ato praticado pelo acionista conflitado a partir de sua participação na deliberação.
Feitas as conceituações acima, passamos a comentar suas aplicações nos PASs julgados pela CVM. Neste sentido e sem prejuízo dos relevantes detalhes e outras matérias examinadas em cada um dos casos decididos, nos parece mais relevante entender a mudança de paradigma da CVM. Para tanto vale examinar os argumentos usados tanto pelo relator e voto vencedor quanto pela Diretora Flavia Perlingeiro que, em ambos PASs, suscitou divergência em favor da aplicação do conflito formal.
Pela tese sustentada pelo relator – replicada na decisão de ambos os processos –, a LSA é taxativa ao indicar as hipóteses nas quais os acionistas estão previamente proibidos de votar. Deste modo é possível inferir que foi a intenção do legislador que outros potenciais conflitos de interesse fossem abordados sob uma ótica material, ensejando maior elasticidade e eficácia para apuração do conflito. O relator reforçou sua exegese legal pontuando que, caso todos os conflitos fossem apurados ex ante e os acionistas impedidos de votar, mecanismos trazidos pela LSA[4] para coibir e responsabilizar os responsáveis por abusar do poder em sociedades se tornariam inócuos. Isto é, se o conflito é sempre constatado e inibido anteriormente à deliberação, não há razão de se apurar e punir em um segundo momento.
Outro argumento inscrito nos votos vencedores é que o conflito formal vai de encontro a dois princípios caros ao direito societário, o do majoritário e a presunção de boa-fé. O primeiro diz que, respeitado os termos da Lei, o acionista que detiver a maioria da participação societária, também deve ter a prerrogativa de exercer o poder correspondente como lhe aprouver, independentemente de ser matéria que lhe concerne diretamente. Já a presunção de boa-fé[5] se traduz na premissa na qual os atos dos acionistas são válidos e alinhados com os interesses da sociedade, não cabendo um controle prévio das matérias nas quais ele pode votar, assim sendo incompatível com conflito formal.
Lado outro, a diretora Flavia Perlingeiro, ao abrir divergência dos votos proferidos pelo relator dos PASs, consignou que a adoção do conflito formal é a alternativa que oferece maior segurança jurídica para os entes regulados. O fato de se apurar o conflito de interesses a priori a uma deliberação significa mitigar a possibilidade de a mesma deliberação ser questionada em um momento futuro, questionamento esse que naturalmente fica a cargo dos acionistas minoritários, parte que usualmente é alvo de abuso de poder pelos majoritários.
Também em seus votos, a diretora rebateu o argumento assentado pelo relator ao dizer que: a existência de mecanismos reparatórios e punitivos para casos de abuso do poder de voto é compatível com a utilização do conflito formal. Isto é porque entende que as deliberações tomadas à revelia da Lei deverão ser corrigidas em um segundo momento, o que não requer que a apuração do conflito também seja deixada para depois. Ademais, a diretora ressalta que a adoção da teoria do conflito material vai em contramão ao entendimento utilizado em economias e sistemas jurídicos mais consolidados como nos EUA e na Europa, assim lamentando o posicionamento tomado pelo relator nos casos em tela.
Não obstante, Flavia Perlingeiro reconheceu que o conflito formal traz dificuldades no tocante a aferição ex ante dos interesses conflitantes. Dessa forma, registrou que a teoria formalista deve, assim como o conflito material, comportar a análise subjetiva do caso concreto para verificar se de fato os interesses de um acionista são colidentes ou convergentes com a da sociedade. Neste sentido, em um ponto de confluência com o relator e visando preservar o princípio do majoritário, a diretora foi além para afastar a uma interpretação literal e mais restrita da teoria do conflito formal, ou seja, se uma deliberação concerne um acionista, esse estaria conflitado e impedido de votar.
Aliás, considerando as recentes decisões, há expectativa que a CVM emita novo parecer de orientação sobre o tema. Isto posto, não é provável que o órgão se proponha a normatizar ou delinear os limites do conflito de interesses, mas indicar premissas para que um acionista potencialmente conflitado possa avaliar sua situação e tomar a melhor decisão considerando o caso concreto.
Ante ao exposto, nos cabe acompanhar as próximas decisões sobre o tema e mantê-los informados.
[1] PAS CVM SEI 19957.003175/2020-50: apuração de conflito de interesses no âmbito de um aumento de capital que ensejou diluição injustificada no âmbito da Saraiva Livreiros S.A.; e
PAS CVM SEI 19957.004392/2020-67: apuração de abuso de controle em operação societária envolvendo a Springer S.A.
[2] Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.
[3] Especialmente no §1º do art. 115 da LSA, conforme transcrito abaixo:
Art. 115 (…) §1º o acionista não poderá votar nas deliberações da assembléia-geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia.
[4] A este respeito, vale transcrever os seguintes dispositivos da LSA:
Art. 115 (…) § 3º o acionista responde pelos danos causados pelo exercício abusivo do direito de voto, ainda que seu voto não haja prevalecido.
Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.
Art. 246. A sociedade controladora será obrigada a reparar os danos que causar à companhia por atos praticados com infração ao disposto nos artigos 116 e 117.
[5]Recentemente positivada pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº13.87/2019)