Em 2012, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou importante caso que tratou de tema que preocupa com alguma frequência os compradores em operações de M&A: o risco de questionamentos acerca da propriedade do vendedor sobre as participações societárias a serem adquiridas.
Não é incomum, por exemplo, que compradores se deparem com empresas que têm livros societários incompletos ou desatualizados – de modo que não seja possível verificar precisamente a cadeia histórica de transferência das ações – ou, ainda, em que possa ser difícil confirmar inequivocamente a validade dos atos anteriores de aquisição de ações pelos vendedores. Nesses casos, é esperado que o comprador avalie com cuidado o risco de que tais atos passados possam afetar o negócio de aquisição a ser realizado no presente.
Referido julgado do STJ traz um possível remédio para tais situações. Naquele caso, o tribunal entendeu que as ações nominativas emitidas por sociedades anônimas estariam também sujeitas ao instituto do usucapião, podendo, portanto, considerar-se legitimamente adquiridas com base na mera posse após decurso de lapso temporal. O caso foi discutido no âmbito de recurso especial, em ação judicial que questionava uma operação de alienação de participação societária que havia sido realizada 20 anos antes.
Em 1983, ações de emissão da Cidade de Deus Comercial Café São Paulo Paraná foram vendidas à Participações Comerciais Rio S.A. e, posteriormente, à Fundação Bradesco. Em 2002, após 20 anos de posse ininterrupta e pacífica das ações por seus adquirentes, as filhas do vendedor original ajuizaram ação judicial contra estes, com o objetivo de questionar o negócio jurídico realizado no passado. A alegação foi de que as ações estariam gravadas com cláusula de inalienabilidade e que, portanto, não poderiam ter sido vendidas. Assim, pediram a anulação do negócio de compra e venda, bem como a restituição das ações alienadas e de todas as outras a elas acrescidas em decorrência de eventuais aumentos de capital social. Alternativamente, pediram pagamento de indenização.
O STJ entendeu que a venda das ações não fora feita de forma ilegal, uma vez que não mais prevalecia a cláusula de inalienabilidade. Adicionalmente, estabeleceu que, de todo modo, seria aplicável ao caso o instituto do usucapião, uma vez que houvera posse ininterrupta das ações – consideradas pelo tribunal como bens móveis e corpóreos – por 20 anos.
Dessa forma, o tribunal concluiu que as ações nominativas seriam bens usucapíveis na forma prevista pela legislação em vigor à época (i.e., Código Civil de 1916). Tal legislação previa que, para haver usucapião de bem móvel, independentemente de título ou boa-fé, a posse devia prolongar-se por 10 anos, podendo o possuidor, para o fim de contar referido tempo, acrescentar à sua posse a do seu antecessor, contanto que ambas fossem contínuas e pacíficas.
A legislação atual (i.e., Código Civil de 2002) manteve, em essência, os requisitos acima relativos ao usucapião de bens móveis, reduzindo, contudo, o prazo exigido para sua caracterização. Tal como previsto na legislação anterior, e mantido na atual, existem dois tipos de usucapião: o ordinário e o extraordinário. Estes se distinguem entre si, basicamente, em função do tempo de posse sobre o bem, e da presença ou não de justo título e boa-fé.
Sob a luz do Código Civil em vigor, o usucapião ordinário ocorre após o prazo de três anos, desde que durante esse período haja posse do bem de forma contínua e pacífica, com base justo título (i.e., documento que dê base à transferência de propriedade) e boa-fé (i.e., desconhecimento ou ignorância de vício que impeça a aquisição da propriedade). Por sua vez, o usucapião extraordinário ocorre com a posse da coisa móvel prolongada por cinco anos, independentemente de justo título ou comprovação de boa-fé do usucapiente.
Quanto a quotas de sociedade limitada, vale destacar que, em 2015 e 2017, o Tribunal Justiça de São Paulo julgou apelações em que negou o respectivo usucapião, sob o fundamento de que quotas seriam bens incorpóreos. Utilizando como base o precedente de 2012 relativo a usucapião de ações nominativas, tratado acima neste artigo, o julgado de 2017 atualmente se encontra em fase de recurso perante o STJ. Assim, aguarda-se a nova decisão do STJ para conferir se o tribunal confirmará ou se se afastará do precedente anterior nesse novo caso e sob qual justificativa.
Não obstante novo posicionamento que possa vir a ser emanado pelo STJ, o precedente de 2012 representa, ainda, importante possível remédio para os compradores em operações de M&A, em face da identificação de elementos, em atos do passado, que possam levar a eventual questionamento sobre a propriedade das ações a serem adquiridas. Nesse contexto, ressalta-se a importância da devida verificação, no âmbito das auditorias legais, não apenas da regularidade material e formal de atos societários e negócios jurídicos de alienação de ações realizados no passado, mas também da existência de elementos que possam vir a caracterizar o usucapião sobre tais participações, garantindo possível remédio em caso de contestação da propriedade sobre tais bens.