Decisão recente no TJ-SP e a natureza material do conflito de interesses em direito societário

Em informativo recente, de outubro de 2020, no qual discutimos decisão do colegiado da CVM que condenou acionistas-administradoras de companhia aberta pela participação em deliberações a respeito de operações nas quais possuíam interesse particular, destacamos que o entendimento jurisprudencial da CVM a respeito da matéria é de que o conflito de interesses possui natureza formal: ele deve ser analisado a priori, isto é, independentemente do conteúdo do voto a ser proferido pelo administrador e/ou acionista conflitado.

Destacamos também que pouco importa, na visão da CVM e dos defensores da natureza formal do conflito de interesses, que a manifestação termine por atender aos interesses sociais da companhia – ou seja, tal argumento não pode ser utilizado como justificativa para afastar eventual conflito.

Recente decisão da 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, reacende discussão histórica e já bastante conhecida entre os praticantes do direito societário no Brasil, ao adotar o critério da natureza material do conflito de interesses, oposta à natureza formal. Segundo tal interpretação, a configuração de eventual conflito de interesses depende da análise das particularidades de cada caso concreto, a posteriori, ou seja, após o voto do administrador e/ou acionista que possua interesse particular em determinada deliberação, uma vez que não seria possível definir, de antemão, que tal interesse particular será necessariamente conflitante com o da companhia.

Referida decisão indeferiu pedido de tutela antecipada postulada por acionistas minoritários da Smiles Fidelidade S.A. (“Smiles”), que buscavam impedir a participação da acionista controladora da companhia, a Gol Linhas Aéreas S.A. (“Gol”), em assembleia geral extraordinária realizada no último dia 5 de fevereiro, convocada para deliberar a propositura de ação de responsabilidade em face de administradores e ex-administradores da Smiles, em decorrência da celebração de contrato de compra antecipada, pela companhia de passagens aéreas de emissão da Gol.

Por entenderem que referida operação teria sido realizada “em condições não comutativas e que não refletem condições de mercado entre partes independentes”, a fim de implementar “operação de adiantamento de recursos à controladora” (transcrições diretas do voto de tais acionistas minoritários na assembleia), os minoritários alegavam que determinados membros da administração da Smiles, por também serem controladores indiretos da Gol, teriam agido em descumprimento de seus deveres fiduciários para com a Smiles.

A intenção dos minoritários, com o pedido de liminar postulado perante o TJ-SP, era a de impedir que a Gol votasse em tal assembleia, por entenderem que os controladores indiretos da companhia aérea, que são os administradores que seriam alvo da ação de responsabilidade em questão, estariam agindo em conflito de interesses – ou seja, deliberando sobre a propositura de uma ação de responsabilidade contra si próprios.

Entre outros fatores (tais como, por exemplo, a existência de procedimento arbitral já instaurado para tratar sobre temas potencialmente conexos com o pedido postulado em juízo), a juíza competente fundamentou sua decisão de rejeitar o pedido de tutela antecipada por entender que não haveria informações suficientes sobre a situação para que fosse possível impedir o voto da controladora Gol na assembleia – ou seja, adotando o critério material para verificação da ocorrência de conflito de interesses.

Destacamos, ainda, o seguinte trecho da decisão: “Assim, antes mesmo de qualquer análise sumária de mérito, não posso deixar de considerar que a estrutura jurídica de regulação das sociedades anônimas apresenta ferramentas que podem ser consideradas eficientes para proteger acionistas minoritários do abuso de controladores (…)”

De fato, a própria Lei das S.A. cuidou de prever mecanismos apropriados a desencorajar a tomada de decisões, seja por administradores ou acionistas, em detrimento de seus deveres fiduciários e sem privilegiar o interesse da companhia, responsabilizando-os por eventuais danos causados por conta de ações e deliberações tomados em situação de conflito de interesses – entre outras medidas, a propositura de ação de responsabilidade em face dos administradores, seja pela companhia (como requirido pelos minoritários no caso aqui discutido) ou por seus acionistas, na hipótese em que a companhia decida não fazê-lo diretamente.

Ou seja, em um caso hipotético análogo ao da Smiles, por exemplo, ainda que os acionistas não aprovem a propositura, pela companhia, de tal ação de responsabilização dos administradores, os minoritários poderão fazê-lo diretamente, sempre em benefício da companhia, desde que representem, no mínimo, 5% do seu capital social – ou mesmo percentual inferior, nos termos da Instrução CVM nº 627, de 22 de junho de 2020, aplicável às companhias abertas, que reduz tais percentuais mínimos justamente para facilitar a adoção de medidas por acionistas que sentirem-se lesados.

Defendem os adeptos da natureza material, portanto, que, uma vez que a Lei das S.A. prevê tais mecanismos de ressarcimento, não há que se falar em necessidade de impedimento, a priori, da manifestação de acionistas ou administradores que possam ter interesse particular em alguma matéria também de interesse da companhia. Basta que tais acionistas e administradores comprovem, quando questionados, que agiram em benefício da companhia, com o devido atendimento a seus deveres legais – sob pena de anulação de deliberações tomadas com conflito de interesse, sem prejuízo da obrigação de ressarcirem a companhia por eventuais perdas e danos.

Concluímos com a expectativa de que, mais do que demonstrar predileção por uma ou outra interpretação acerca do assunto, esse informativo (somado a nossas considerações do artigo anterior, citado acima) contribua para o debate sobre a questão do conflito de interesses, especialmente no que diz respeito à importância de se compreender as nuances de cada interpretação, bem como suas implicações práticas (por exemplo, em discussões em sede administrativa perante a CVM, tende a prevalecer a interpretação formal; em outras searas, as linhas de defesa ou de contestação a determinados atos podem ter de focar em aspectos mais personalíssimos ao caso concreto).

Ir ao Topo