Em julgamento recente, a CVM abordou a infração ao art. 156 da Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas, “LSA”) e a caracterização de conflito de interesses por parte de administradores da Recrusul S.A. (“Companhia”), que participaram em deliberações a respeito de operações nas quais possuíam interesse particular. Em síntese, houve, pelos administradores, a celebração de contratos com conflitos de interesses, pois estes eram contrapartes diretas e indiretas nesses contratos, os quais não foram apontados nas demonstrações financeiras da Companhia como transações com partes relacionadas, sendo que ainda teria havido a falha em divulgar fato relevante com relação a aumento de capital concretizado em virtude dos contratos celebrados. Assim, o Processo Administrativo Sancionador (“PAS”) CVM Nº RJ2016/7929 também abordou afronta aos arts. 157, §4º, 177, §3º e 176, §5º, III da LSA.
Os contratos em questão previam garantias fidejussórias às obrigações da Companhia, a serem concedidas pelos administradores ou por suas controladas. Estes administradores eram, à época, os únicos diretores da companhia, os quais também integravam o conselho de administração. Em troca, eles gozariam de remuneração baseada nas dívidas efetivamente garantidas. Os contratos também possuíam cláusulas de indenidade, que protegiam os administradores contra riscos em relação a dívidas trabalhistas, tributárias e previdenciárias. Estes contratos foram aprovados em reunião do conselho de administração de 20 de dezembro de 2011, com o voto dos administradores conflitados.
Para a CVM, os administradores não poderiam ter votado em dita reunião por conta do conflito de interesses, e, nesse sentido, há diversos precedentes[1]. O entendimento jurisprudencial da CVM é de que o conflito de interesses é de natureza formal, que deveria ser analisado a priori, isto é, independentemente do conteúdo do voto a ser proferido pelo administrador conflitado e do atendimento aos interesses sociais da companhia, sendo que este último não pode ser utilizado como justificativa para afastar o conflito.
A respeito do conflito explicitado no art. 156 da LSA, a proibição legal se fundaria na existência de interesse paralelo do administrador, que, ao participar ativamente das negociações em que é contraparte direta ou indireta ou em que possui algum eventual benefício, pode influenciar as condições a serem contratadas, dado seu interesse econômico na questão.
O interesse pessoal deve ser entendido como aquele inerente ao administrador enquanto pessoa natural, ou, extensivamente, o interesse compartilhado por partes a ele relacionadas. Dessa forma, no caso da Companhia, em que os administradores não só contrataram em nome próprio, como também por meio de controladas, decidiu-se por estar configurado o interesse pessoal.
A defesa dos administradores citou interessante precedente no âmbito de julgamento de recurso feito pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) no Processo 10372.100137/2017-45 (PAS CVM nº RJ2014/591), em que se concluiu que deve haver um outro critério para a caracterização de conflito de interesses, para além de sua natureza formal ou material, que seria o “forte perigo de comportamento incorreto” por parte dos administradores, balizando os atos praticados a partir dos deveres mínimos de cuidado e fiduciários de administradores e controladores. E mesmo sob essa perspectiva, a CVM entendeu que estaria configurado o conflito de interesses no caso em análise.
Ainda, sustentou que o conflito de interesses do art. 156 seria substancial, isto é, somente se mostraria a partir da ocorrência de prejuízo à companhia ou a outros acionistas e que tais deveriam ser provados pela acusação. Para sustentar suas alegações, utilizou o precedente do PAS CVM nº 25/2003, que, todavia, apresentava situação diversa do caso em tela: o administrador daquele caso atuava na gestão de duas companhias que contrataram entre si, sendo que tal administrador não participava em nenhuma delas como sócio. Nesta última situação, a CVM entendeu que não haveria conflito, por não existir interesse pessoal do administrador na operação.
Em situações de conflito de interesse, segundo a LSA, o administrador tem a obrigação de declarar tal situação aos demais administradores, registrando a natureza e a extensão de seu conflito. Mais do que isso, para a CVM, ainda, o administrador deve também se abster de participar de todas as negociações, debates e deliberações a respeito da operação. Este é a recomendação geral a ser dada em casos de conflito de interesse, segundo o entendimento mais recente da CVM acerca do assunto.
No caso em análise, a defesa dos administradores ainda alegou que a Companhia ter como únicos diretores aqueles conflitados deveria servir para afastar a irregularidade, somada ao fato de que os contratos ainda teriam sido levados ao Conselho de Administração para apreciação. Para a CVM, nesses casos, cabe ao Conselho decidir sobre a operação e, caso ele também esteja em conflito, cabe à Assembleia Geral fazê-lo.
A defesa ainda tentou argumentar que a unanimidade da votação no âmbito do Conselho demonstraria que o tema teria sido aprovado, ainda que os votos dos administradores conflitados não fossem considerados. Para a CVM, todavia, isso não indica não violação ao art. 156, uma vez que a violação recai sobre a conduta dos administradores, e não sobre a deliberação tomada.
Por fim, houve enfrentamento do argumento da defesa de que os atos do Conselho são chancelados pelos acionistas quando da realização de assembleia geral e que o prazo prescricional para anulação de assembleias é de dois anos, conforme o art. 286 da LSA, e que ações contra os administradores prescrevem em três anos nos termos do art. 287 da LSA. Esses prazos prescricionais dizem respeito à pretensão de ação de acionistas e da própria companhia aplicáveis a todas as sociedades anônimas.
Embora estes prazos já tivessem sido atingidos havia tempo, a CVM indicou que, apesar da prescrição dessas pretensões, esta não seria ainda aplicável à pretensão punitiva da CVM, órgão da Administração Pública que segue os prazos previstos na Lei nº 9.783/99. Assim, entendeu-se pela condenação dos acionistas-administradores com relação ao descumprimento do art. 156 da LSA e pela penalidade de multa pecuniária no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) para cada um dos diretores, com relação a esta infração específica, sendo que houve condenação adicional no montante de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) em razão da elaboração de demonstrações financeiras sem o reconhecimento e divulgação de transações com partes relacionadas e ainda a aplicação de advertência por não divulgação de fato relevante quando da operação de aumento de capital decorrente dos contratos. Lembramos que os fatos do presente caso ocorreram antes da edição da Lei nº 13.506/2017, que majorou as punições aplicáveis pela CVM quando da afronta à LSA, e que, por isso, as penas para atos semelhantes praticados após a nova lei podem ter punições ainda mais severas por parte do órgão regulador.
[1] PAS CVM nº 09/2009, Rel. Dir. Luciana Dias, j. em 21.07.2015; Processo CVM nº RJ2004/5494, Rel. Dir. Wladimir Castelo Branco, j. em 16.12.2004; PAS CVM nº 12/2001, Rel. Dir. Pedro Oliva Marcilio de Sousa, j. em 12.01.2006; PAS CVM nº RJ2013/1840, Rel. Dir. Ana Novaes, j. 15.04.2014; e PAS CVM nº 09/2006, Rel. Dir. Ana Novaes, j. em 05.03.2013.