As operações de fusões e aquisições são campo amplo de importação de instrumentos jurídicos, dado que a globalização dos negócios e a relevante participação de agentes estrangeiros nas transações locais tendem a contribuir para a utilização de estruturas e cláusulas originadas fora do Brasil.
No entanto, a sua internalização no sistema jurídico nacional exige cuidado não só das partes envolvidas na sua negociação, mas também de eventuais terceiros chamados a interpretá-las (seja via judiciário ou arbitragem). Afinal, é imperativo reconhecer as limitações dessa internalização tendo em vista os diferentes sistemas e ordenamentos jurídicos envolvidos.
Por exemplo, é prática usual também nas operações locais a celebração de um memorando de entendimento (ou “MoU”, abreviação de “Memorandum of Understanding” no idioma original), previamente à celebração dos documentos definitivos, por meio do qual as partes pretendem alinhar questões consideradas mais relevantes ou delimitar os contornos da documentação definitiva que passará a ser negociada em seguida.
E, tal como no exterior, uma das principais discussões que envolvem os MoU é sobre o caráter vinculativo (ou não) do instrumento. Embora tal questão tenha sido apenas timidamente enfrentada por nossa jurisprudência, é possível encontrar decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos dois sentidos[1] sendo fatores preponderantes para a decisão não só a redação do documento – i.e., se o MoU em questão indicava claramente o caráter vinculativo (ou não) do instrumento ou de disposições específicas –, mas também o comportamento das partes durante as tratativas objeto do MoU.
Esse último ponto é especialmente relevante, dado que, independentemente do caráter vinculativo ou não do MoU, as partes não podem afastar a incidência dos deveres legais previstos no ordenamento nacional para as contratantes (que nem sempre são os mesmos em outras jurisdições), tal como o dever de boa-fé objetiva contemplado no artigo 422 do Código Civil. Ou seja, por ser um contrato, o MoU é regido pelas regras gerais atinentes a tal tipo jurídico, independente do seu caráter não vinculante; dessa forma, desde a assinatura e até o término de sua vigência, é preciso que as partes ajam com boa-fé, lealdade e cooperação, sob pena de reparação por perdas e danos.
Outra importação interessante é a da figura do “stalking horse”, comumente utilizada no exterior em aquisições envolvendo processo competitivo. De forma bastante resumida, uma parte age como “stalking horse” quando assegura, em negociação com o vendedor, o direito de preferência para igualar quaisquer propostas de terceiros pela aquisição dos mesmos ativos. Sua crescente adoção no Brasil, notadamente em aquisições realizadas no âmbito de processos de recuperação judicial, exigirá que o judiciário enfrente diversas questões sobre sua aplicação, já que não existe legislação específica que regule essa figura, tampouco jurisprudência nacional consolidada que lhe dê diretrizes.
No exterior é bastante comum que o “stalking horse” negocie também outros direitos relacionados a tal preferência, tais como a proibição de que o vendedor solicite ativamente propostas de terceiros (a chamada “no-shop provision”) e multa compensatória na hipótese de não fechamento da aquisição (a chamada “break-up fee”). Naturalmente, essas disposições já foram objeto de ampla discussão pelas cortes estrangeiras, resultando na definição de parâmetros para sua adoção – por exemplo, limite máximo para a “break-up fee” ou duração máxima para a “no-shop provision”. Como essas questões serão enfrentadas pelas cortes locais?
Finalmente, não podemos nos esquecer das cláusulas de efeito e/ou mudança material adversos (“MAE” ou “MAC”, abreviações de “material adverse effect” ou “material adverse change” no idioma original), mediante as quais as partes regulam o término antecipado da operação, antes de sua conclusão, uma vez materializados certos acontecimentos que alteram, de forma relevante, a situação da empresa objeto da aquisição.
Embora amplamente utilizadas no Brasil e no exterior, trata-se de cláusulas de difícil aplicação prática mesmo na jurisprudência estrangeira. Embora amplamente discutida e testada na Chancery Court de Delaware (corte geralmente reconhecida como a mais relevante para a resolução de disputas empresariais nos Estados Unidos), foi só em 2018 que se confirmou, pela primeira vez, a existência de um efeito material adverso suficiente para justificar o exercício de uma cláusula MAE/MAC[2].
Para fins deste artigo, é interessante notar a similaridade entre tais cláusulas e os institutos da imprevisão e da onerosidade excessiva, naturais ao ordenamento jurídico brasileiro – de forma bastante resumida, esses institutos possibilitam a revisão ou rescisão de negócios jurídicos em função de alterações extraordinárias e imprevisíveis no contexto de uma operação. Ou seja, embora a jurisprudência nacional ainda não tenha posição firme sobre o exercício de cláusulas MAE/MAC, a própria legislação nacional já prevê remédios próprios aplicáveis a muitos dos mesmos casos, mas certamente com nuances diferentes. Muitos negócios foram reanalisados e muitos escritórios de advocacia foram contatados para reavaliar relações e contratos à luz dessas disposições e institutos, por conta da atual pandemia.
Em resumo, nosso objetivo é destacar que a importação de institutos estrangeiros, embora plenamente possível ou mesmo desejável (na medida em que pode estimular a evolução do mercado local e a atração de investimento estrangeiro, pela familiaridade com as operações), exige cuidado com sua adequação ao contexto local.
[1] Apenas a título exemplificativo, citamos as decisões no âmbito da Apelação nº 0005452-31.2013.8.26.0100 e da Apelação nº 1074937-67.2014.8.26.0100, ambas perante o TJ-SP.
[2] Decisão de 1º/10/2018, no caso Akorn, Inc. v. Fresenius Kabi AG.