Já é certo que as operações de fusões e aquisições (M&A) no Brasil foram impactadas em menor ou maior proporção pela pandemia da COVID-19, mas ainda pairam incertezas no âmbito jurídico com relação às soluções legais que os agentes econômicos terão à sua disposição no enfrentamento deste evento.
Toda a lógica do direito contratual brasileiro está centrada na ideia de que os contratos têm força de lei entre as partes e por isso devem ser cumpridos até o fim, tal como negociados por elas (é o princípio do pacta sunt servanda). Desta premissa resulta que as partes não podem, por mera vontade, desligar-se do contrato, e também que os termos e condições ali constantes não podem ser modificados ou alterados unilateralmente, ao bel prazer de um dos contratantes. A necessária segurança jurídica implica que, somente diante de situações extraordinárias, imprevisíveis e suficientemente graves, o ordenamento jurídico admita a revisão ou a interrupção do programa contratual originalmente estipulado.
Assim, é diante do atual contexto de crise que ganha importância o tema das exceções ao princípio da obrigatoriedade dos contratos. O que foi pactuado lá atrás, em um cenário pré-crise, não necessariamente se aplica à atual situação, levando à necessidade de se reajustar, ou até mesmo encerrar, o que foi estabelecido de comum acordo e de forma vinculante entre as partes.
De um lado, tem-se as hipóteses de interrupção antecipada dos contratos por uma das partes, que levam ao encerramento da relação jurídica previamente estabelecida e são chamadas de causas de extinção do contrato. De outro, existem as hipóteses em que a lei autoriza a qualquer uma das partes pedir a revisão do contrato, de modo a alterar os termos e condições originalmente pactuados, mas mantendo-se preservada a existência do negócio jurídico.
Exemplo de causa de extinção dos contratos de M&A, a cláusula de efeito material adverso (ou material adverse clause, no direito anglo-saxão, também chamada simplesmente de cláusula MAC) possibilita que o comprador termine antecipadamente o contrato, antes da conclusão da operação. Para tanto, as partes pactuam que certos eventos capazes de impactar o funcionamento usual da empresa, afetando a sua capacidade econômico-financeira, ou de aumentar a exposição do comprador a riscos e responsabilidade, caso venham a se materializar, poderão ocasionar o término do negócio. São geralmente eventos ordinários ou extraordinários externos ao comportamento das partes, frutos das circunstâncias a que a sociedade se encontra sujeita, inexistindo, portanto, descumprimento contratual pela parte, o que faz com que a cláusula MAC seja considerada um mecanismo típico de resilição (art. 473 do Código Civil).
Porém, não raro as partes procuram deixar explícito em contrato, para fins da cláusula MAC, que a ocorrência de pandemias não deverá ser considerada evento material adverso. Assim, o ponto de discussão envolvendo esta cláusula é se a pandemia da COVID-19 poderia ser enquadrada como um efeito material adverso diante do silêncio do contrato.
Neste caso, cogita-se do uso do art. 478, que autoriza a resolução (por via judicial ou arbitral, necessariamente) uma vez ocorrido um evento imprevisível e extraordinário que cause extrema vantagem para uma das partes e excessiva onerosidade para a contraparte.
A extinção antecipada do contrato (i.e., a resolução) é medida drástica e extraordinária, devendo ser admitida somente em casos extremos, quando a preservação do negócio se mostra impossível ou excessivamente gravosa para uma das partes. Isso quer dizer que o sucesso da resolução de um contrato de M&A (fundamentada no art. 478 do Código Civil) dependerá de o comprador conseguir comprovar satisfatoriamente não só o atendimento aos requisitos mencionados anteriormente (evento imprevisível e extraordinário; extrema vantagem para uma parte e excessiva onerosidade para a outra; etc.), bem como afastar eventuais acusações de que está adotando comportamento abusivo e oportunista. Tudo isso para demonstrar o atendimento ao princípio da boa-fé e aos deveres laterais que dela emanam (de colaboração, de lealdade, de informação, etc.), nos termos do art. 422 do Código Civil.
Adicionalmente, convém lembrar que a parte que tiver dado causa à resolução poderá eventualmente também tentar se socorrer da teoria do caso fortuito ou força maior (art. 393 do Código Civil), a fim de se eximir da responsabilidade de indenizar a outra parte. Para tanto, deve haver a comprovação quanto à (i) ausência de culpa do devedor, (ii) ocorrência do nexo causal entre o caso fortuito ou força maior e (iii) impossibilidade do adimplemento temporário pelo devedor.
A resolução de um contrato de M&A pode ainda ter fundamento no descumprimento de obrigação por uma das partes (arts. 474 e 475 do Código Civil). Questão que provavelmente despertará polêmica nas transações em curso refere-se à possibilidade de o comprador pretender resolver o contrato em razão do descumprimento pelo vendedor da cláusula de condução de negócios. Esse dispositivo contratual tem por finalidade restringir a autonomia do vendedor na tomada de decisões em relação à companhia entre o período de assinatura do contrato (signing) e a conclusão do negócio (closing), a fim de garantir que a situação da sociedade seja preservada enquanto o comprador nela não ingressa efetivamente. Diante do atual cenário de crise, em que decisões ágeis e pouco usuais são não apenas necessárias, mas muitas vezes determinantes do sucesso ou do fracasso da atividade empresarial, até que ponto deverão ser consideradas violadoras do contrato decisões empresarialmente adequadas tomadas por vendedores que visem a preservação de valor do negócio, mas que não tenham contado com a anuência do comprador (por falta de tempo, por exemplo)?
Analisada as causas extintivas do contrato, resta examinar os remédios jurídicos ligados à revisão dos contratos, os quais têm por fundamentos os conceitos de imprevisibilidade (art. 317 do Código Civil) e onerosidade excessiva (arts. 479 e 480 do Código Civil).
A revisão contratual por imprevisibilidade de eventos capazes de afetar o programa contratual encontra-se prevista no artigo 317 do Código Civil, e exige, para sua atuação, que o cumprimento da obrigação torne-se extremamente difícil e oneroso à parte, de modo que exista uma quebra no equilíbrio contratual, ocasionando uma desproporção entre o valor da prestação devida e o seu valor no momento de sua execução – o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir se a crise financeira mundial de 2008 poderia ser caracterizada como um fato imprevisível para extinguir obrigações contratuais, entendeu pela manutenção do acordado, uma vez que crises são riscos ordinários de qualquer negócio e não podem servir de fundamento para sustentar a teoria da imprevisão.
Já a revisão contratual baseada na onerosidade excessiva está regulada nos artigos 479 e 480 do Código Civil. Seu pressuposto, ao menos do ponto de vista formal, é que haja um pedido de resolução do contrato por onerosidade excessiva (art. 478 do Código Civil) já em curso, cabendo à parte contra quem foi proposta a resolução oferecer, alternativamente, a revisão contratual, a fim de reequilibrar e preservar a existência do contrato. Para permitir que a parte requeira o reestabelecimento do equilíbrio contratual, ela precisará comprovar os seguintes requisitos: (i) evento imprevisível e extraordinário; (ii) extrema vantagem da contraparte; e (iii) excessiva onerosidade em seu desfavor.
Os institutos de revisão contratual tendem a ser encarados positivamente pelo ordenamento jurídico se comparados às causas extintivas do contrato, na medida em que não implicam a extinção do negócio jurídico, garantindo assim a preservação das relações econômicas. Isso não quer dizer, porém, que a pandemia poderá ser utilizada como uma fórmula pronta e de uso amplo para todos os casos de desequilíbrio contratual. As decisões jurisprudenciais no tema ainda são poucas e muito recentes, e ainda não se sabe em que direção se formará um entendimento a respeito do assunto.
Assim, a possibilidade de se recorrer aos instrumentos jurídicos de revisão contratual recomenda prudência. Caberá aos agentes econômicos avaliarem as peculiaridades e circunstâncias do caso concreto, o tipo do negócio jurídico e a intenção original das partes com aquela obrigação, a fim de mensurar se o seu direito à revisão contratual está legitimamente amparado ou não. Atitudes incoerentes com o comportamento até então adotado por umas partes (i.e., comportamento contraditório que quebra a legítima expectativa da outra parte) ou meramente oportunistas poderão ser rechaçadas caso submetidas à apreciação do Judiciário ou de um tribunal arbitral.
Dito isso, os instrumentos de revisão contratual podem ser úteis e, como apontado anteriormente, preferíveis em um cenário de desequilíbrio contratual. Um exemplo ocorre no caso das cláusulas de ajuste de preço, entre as quais se destaca a cláusula de earn-out. Tal cláusula condiciona o pagamento de parcela do preço ao cumprimento de determinadas métricas e obrigações, a serem satisfeitas após a conclusão da operação. O atual cenário econômico adverso parece muito fértil a gerar discussões em transações que questionem, por exemplo, o não atingimento de métricas ou o acerto na tomada de decisões pela parte que estiver à frente da direção da atividade empresarial.
Em tais casos, será benéfico aos agentes envolvidos que haja uma solução amigável e menos custosa do problema, sem a interferência muitas vezes indesejada de terceiros, que não participaram das negociações e, portanto, não estão imbuídos das sensibilidades comerciais e econômicas da transação. Para isso certamente contribuirá a adoção de algumas estratégias, como (i) a documentação dos impactos da COVID-19 e as medidas tomadas para sua mitigação, e (ii) o engajamento do vendedor junto ao comprador, no sentido de cooperar e auxiliar no enfrentamento da crise pela sociedade.
É inegável que com a pandemia causada pela COVID-19 emergiram diversas discussões jurídicas que, até então, não tinham sido aplicadas em situações tão críticas, como a crise econômica vivenciada atualmente. O terreno torna-se ainda mais árido e incerto dada a abrangência de seus efeitos sobre, indiscriminadamente, todos os agentes econômicos. Dessa forma, a diversidade de mecanismos apresentada deve ser analisada caso a caso, levando-se em consideração as peculiaridades de cada transação e os imperativos da boa-fé objetiva (cooperação, lealdade, informação, etc).
O tema é cercado por polêmicas, e a interpretação que a ele dará a jurisprudência somente evidencia o grau de incerteza quanto ao futuro. Assim, neste cenário de maciça imprevisibilidade, uma das poucas certezas que se pode ter é que a disposição das partes em colaborarem e encontrarem soluções aos seus problemas pela via extrajudicial será crucial para preservar valor às transações e garantir a satisfação mútua dos interesses dos contratantes.