A Cessão de Direitos Creditórios a FIDC por seus Prestadores de Serviços e as Novas Regras da CVM em Audiência Pública

As regras atualmente aplicáveis aos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) vedam ao administrador, gestor, custodiante e consultor especializado, ou partes a eles relacionadas[1], ceder ou originar, direta ou indiretamente, direitos creditórios aos FIDC aos quais prestam serviços[2]. Por meio de tal vedação, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) objetiva impedir que esses prestadores de serviços se coloquem em situação de conflito, em que poderiam tomar decisões e obter incentivos não alinhados com os interesses dos cotistas.

Esse posicionamento da CVM vem há muito sendo debatido pelo mercado. Muitos desses debates giram em torno dos limites da atuação do regulador, e da pertinência de sua abordagem mais protetiva, frente às complexidades do mercado e ao grau de autonomia que deve ser assegurado aos investidores com maior qualificação.

Em que pese o potencial dano que o conflito de interesses pode causar, há casos em que a cessão de direitos creditórios por prestadores de serviços pode oferecer benefícios relevantes, em especial se forem estabelecidas regras que mitiguem os riscos relacionados a tal conflito. Além de permitir a alocação mais adequada da oportunidade de negócio pelo prestador de serviços, que conhece o ativo e consegue avaliar sua adequação ao perfil do FIDC que o adquirirá, mitigando o risco associado a assimetria de informações, negócios com partes relacionadas também podem envolver custos de transação mais reduzidos.

Por meio da Audiência Pública SDM nº 08/20, a CVM propôs uma nova abordagem à aquisição, pelo FIDC, de direitos creditórios cedidos ou originados por seus prestadores de serviços e partes a eles relacionadas. As novas regras sugeridas consideram principalmente o público-alvo do FIDC, e podem ser assim sumarizadas:

  1. se o FIDC for destinado ao público em geral, seu regulamento deve vedar a aquisição de direitos creditórios originados ou cedidos pelo administrador, gestor, consultor especializado, custodiante, entidade registradora[3] dos direitos creditórios e partes a eles relacionadas[4];
  2. se o FIDC for destinado a investidores qualificados, admite-se a aquisição pelo FIDC de direitos creditórios originados ou cedidos pelo administrador, gestor, consultor especializado, custodiante, entidade registradora dos direitos creditórios e partes a eles relacionadas, desde que: (1)observados os limites que obrigatoriamente devem constar do regulamento do FIDC[5]; (2) o administrador, o gestor, o consultor e a entidade registradora não sejam partes relacionadas entre si[6]; (3) a registradora dos direitos creditórios não seja parte relacionada ao originador ou cedente[7]; e (4) caso haja coobrigação do prestador de serviços originador ou cedente, a aplicação fique limitada a 20% do patrimônio líquido da respectiva classe de cotas[8][9]; e
  3. se o FIDC for destinado a investidores profissionais, admite-se a aquisição pelo FIDC de direitos creditórios cedidos pelo administrador, gestor, consultor especializado, custodiante, entidade registradora dos direitos creditórios e partes a eles relacionadas, desde que: (1)observados os limites que obrigatoriamente devem constar do regulamento do FIDC[10]; e (2) a registradora dos direitos creditórios não seja parte relacionada ao originador ou cedente[11].

A CVM também propôs, por meio da citada Audiência Pública, uma definição para o conceito de originador de direitos creditórios, até então sujeito a interpretações. Nos termos da minuta de Resolução, define-se como originador o “agente que tenha atuação na concessão primária do crédito e concorra diretamente para a formação do direito creditório, incluindo aqueles que atuam na qualidade de representante ou mandatário de um dos contratantes, o que inclui a relação comercial inicialmente feita com o devedor no momento da concessão do crédito, mas não fica a ela limitada[12].

Integra o conceito proposto de originador, portanto, não somente aquele que tenha figurado como parte na relação jurídica geradora do direito creditório, mas também aquele que tenha de outro modo concorrido para sua formação. Trata-se, como se nota, de interpretação mais ampla do termo, que pode afetar algumas estruturas e modelos de negócios existentes.

Ainda que a proposta da CVM possa receber alguns ajustes para melhor adequação às diversas dinâmicas e necessidades do mercado de FIDC, a abordagem geral do tema pela CVM, voltada à preservação da autonomia do investidor de acordo com seu perfil e qualificação, é louvável e condizente com seus pilares estratégicos de garantir a integridade, estimular a eficiência e promover o desenvolvimento do mercado.

 

 

[1] Tal como definidas pelas regras contábeis que tratam do assunto (art. 39, §2º da Instrução CVM nº 356, de 17 de dezembro de 2001).

[2] Art. 39, §2º da Instrução CVM nº 356/01).

[3] Trata-se da entidade registradora, regulada pelo Banco Central do Brasil, em que a CVM propõe sejam registrados os direitos creditórios a serem adquiridos pelos FIDC, para reduzir riscos relacionados à inexistência e à dupla cessão dos ativos (art. 36, I do Anexo Normativo II da minuta de Resolução).

[4] Art. 14, V, (b) do Anexo Normativo II da minuta de Resolução.

[5] Art. 27, V, (a) do Anexo Normativo II da minuta de Resolução. Ressalta-se que, neste dispositivo, não há menção à necessidade de se estabelecer os mesmos limites à cessão de direitos creditórios pelo custodiante ou pela entidade registradora.

[6] Art. 45, I do Anexo Normativo II da minuta de Resolução. Verifica-se, mais uma vez, a ausência de menção ao custodiante do FIDC.

[7] Art. 45, II do Anexo Normativo II da minuta de Resolução.

[8] Art. 48, §5º do Anexo Normativo II da minuta de Resolução.

[9] Lembramos que, nas novas regras propostas pela CVM, o conceito de classe de cotas possui significado distinto do atual. Cada classe de cotas, na nova acepção, pode gerar a seu titular direitos e obrigações diferentes, e possuir seu respectivo patrimônio segregado (art. 40 da minuta de Resolução).

[10] Art. 27, V, (a) do Anexo Normativo II da minuta de Resolução. Como mencionado na nota 5, acima, este dispositivo não faz menção à necessidade de se estabelecer limites à cessão de direitos creditórios pelo custodiante ou pela entidade registradora.

[11] Art. 45, II do Anexo Normativo II da minuta de Resolução.

[12] Art. 2º, XXI do Anexo Normativo II da minuta de Resolução.

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