Desenvolver o ambiente de negócios brasileiro tem sido uma das principais agendas governamentais nos últimos anos. O objetivo é trazer maior competitividade para o Brasil no cenário global, especialmente levando em conta a timidez do mercado de capitais nacional.
Nesse contexto, surgiu a Lei 14.195/2021, a partir da MP 1.040, da qual já tratamos em Informativo anterior[1]. O texto da lei promove uma série de alterações legislativas com o intuito de adequar o Brasil às práticas de mercado internacionais, considerando as categorias elencadas no relatório Doing Business elaborado anualmente pelo Banco Mundial.
Dentre os assuntos incluídos na tramitação Projeto de Lei de Conversão (PLV), destaca-se a retirada da vedação ao voto plural em sociedades por ações. Dessa forma, artigos da Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76)[2] foram alterados para refletir a novidade, nos aproximando de legislações como a norte-americana, a francesa e a italiana, que já admitiam o voto plural, cada uma a seu modo.
O voto plural consiste na criação de uma nova classe de ações ordinárias que terão direito a mais de um voto cada uma nas deliberações sociais, diferentemente das ações ordinárias comuns, que fazem jus a um único voto. Assim, deixa-se a máxima consagrada de “uma ação, um voto”, e cria-se a possibilidade de dissociar do capital o poder de controle, o que por vezes se buscava através de ações preferenciais e de acordos de acionistas.
Embora a nova norma não tenha sido objeto de audiência pública, o tema já vinha sendo discutido no âmbito da Iniciativa de Mercado de Capitais (IMK), ação estratégica do governo envolvendo diversos órgãos e entidades públicas e da sociedade civil que lidam com o mercado de capitais. A necessidade de se discutir a possível inserção do voto plural no ordenamento jurídico brasileiro surgiu a partir de uma constatação de que algumas das últimas empresas que realizaram IPO (Oferta Inicial de Ações) em outros mercados (principalmente no norte-americano), tinham como grande motivação, entre outras, o fato de que naqueles países era permitido o voto plural.
A adoção do voto plural, todavia, não era unânime. Dentre as manifestações contra este instituto, destaca-se a posição da Associação de Investidores do Mercado de Capitais (AMEC)[3] que desde o começo das discussões expressou a preocupação de seus associados a respeito da questão. O principal argumento nesse sentido é que o voto plural criaria uma discriminação entre os acionistas, que a longo prazo poderia ser nociva ao mercado de capitais. Esse risco seria reforçado pelo histórico do mercado de capitais brasileiro, que já foi palco de diversos escândalos societários no passado por abuso do poder de controle.
A corrente favorável, no entanto, ressalta o ganho que o acionista fundador de seu negócio tem com a adoção dessa estrutura, que o permitirá atrair investimentos através de alienações da ação da companhia, sem ter que abrir mão do poder de controle manifestado pela maioria dos votos em assembleia. Essa possibilidade ganha ainda mais relevância em startups e sociedades participantes de setores que exigem decisões estratégicas notadamente técnicas e que, em tese, seriam melhor tomadas pelo fundador, conhecedor do negócio. A ABRASCA – Associação Brasileira das Companhias Abertas[4] expôs seu posicionamento favorável, ressaltando o uso dessa estrutura por empresas brasileiras que foram listadas no mercado norte-americano, como XP, Stone e PagSeguro.
Para que a inserção do voto plural se concretizasse, então, foi necessário alocar a preocupação com os impactos ao mercado de capitais e o interesse de se elevar o ordenamento brasileiro em termos de estruturas acionárias ao nível internacional. A solução encontrada foi a criação de salvaguardas na lei que trouxessem mais segurança aos investidores, com atenção especial aos minoritários. Dentre as regras criadas, destacam-se a limitação temporal, isto é, o prazo de sete anos para manutenção do voto plural, extensível por tempo indeterminado após este período, assim como a limitação quantitativa de votos, que restringe a dez o máximo de votos por ação.
Na mesma linha, a lei vedou a utilização do voto plural nas deliberações sobre remuneração dos administradores e transações com partes relacionadas que atendam aos critérios de relevância a serem estabelecidos pela CVM. Embora parte do mercado defendesse que outras matérias fossem igualmente incluídas no rol de assuntos não sujeitos ao voto plural, como operações de fusões e aquisições, é inegável que as duas operações listadas na lei estão entre aquelas que têm maior potencial de suscitar conflito de interesses.[5]
Outro ponto que merece atenção é o capítulo no qual o voto plural foi inserido na Lei 14.195/2021. As alterações para possibilitar a estrutura foram inseridas no Capítulo III: “Da Proteção dos Acionistas Minoritários”. De plano, os benefícios parecem ser mais do controlador/fundador do que do acionista minoritário. Mas do Parecer do Deputado Marco Bertaiolli, relator do PLV[6], é possível perceber qual é o ganho do acionista minoritário: a transparência na relação entre acionistas, regulador e companhia, que deixa de precisar de manobras societárias e cria mecanismo legal para regular o descompasso entre poder econômico e político dentro das companhias e estabelece limites para tal.
Ainda, outra preocupação foi a de não permitir que companhias com ações negociadas em bolsa pudessem alterar suas configurações acionárias para utilizar ações com voto plural, visando impedir instabilidades no mercado. Assim, apenas companhias que não têm suas ações negociadas no mercado de valores mobiliários poderão aplicar o novo instituto, o que deverão fazer mediante aprovação de mais da metade das ações ordinárias e mais da metade das ações preferenciais, se emitidas, sendo que caberá aos acionistas dissidentes o direito de se retirarem da companhia mediante reembolso do valor de suas ações, exceto se a criação da classe de ações ordinárias com direito de voto plural já estiver prevista ou autorizada pelo estatuto.
Por outro lado, algumas entidades favoráveis à norma acreditam que as salvaguardas possam servir de desincentivo às companhias, dado que em outros ordenamentos, como o norte-americano, a responsabilidade de definição das características das ações com voto plural fica a critério dos órgãos reguladores (que estão mais em contato com o mercado e, a princípio, teriam mais conhecimento sobre suas necessidades) ou, até mesmo a cargo dos próprios acionistas e investidores. Também por isso, ainda não é possível prever qual será a real aceitação deste novo mecanismo pelas companhias que desejam realizar abertura de capital.
No âmbito de companhias fechadas que não têm intenção de se tonar companhias abertas, as discussões são ainda mais escassas e o cenário um pouco menos claro, tendo em vista que o voto plural foi criado a partir da perspectiva das companhias que buscam abrir capital e ofertar ações na bolsa de valores.
O tempo e a prática societária serão essenciais para revelar os efetivos pontos de atenção do mecanismo e, consequentemente, a real necessidade de serem feitas adaptações e modificações.
[1] https://www.vidigalneto.com.br/artigos/a-edicao-da-medida-provisoria-no-1-040-21-e-sua-relevancia-para-o-cenario-empresarial
[2] Artigos 15, 16, 16-A, 110, 110-A, 135, 136, 141, 215, 243 e 284 da Lei das Sociedades por Ações foram alterados.
[3] https://amecbrasil.org.br/amec-expressa-preocupacoes-sobre-voto-plural-em-carta-enviada-para-cvm-b3-e-imk/
[4] http://abrasca.testes.aatb.com.br/noticias/sia-cia-1529-voto-plural-e-tendencia-internacional
[5] https://capitalaberto.com.br/nao-listavel/voto-plural-enfim-passa-a-valer-no-brasil-e-agora/
[6]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2026492&filename=PRLP+1+%3D%3E+MPV+1040/2021