Deliberação de suspensão de direitos políticos de acionistas é considerada ilegal pela CVM

A pretensão de um acionista da Gafisa S.A. (“Gafisa”) de suspender os direitos políticos de outro mediante deliberação em assembleia geral da companhia que ocorreu no fim de abril (“Assembleia”) foi afastada pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), inicialmente por meio de parecer técnico[1] emitido pela Superintendência de Relações com Empresas (“SEP”)[2], e posteriormente acompanhado pelo Colegiado da CVM[3].

No caso em questão, o acionista Estocolmo Fundo de Investimento Multimercado Crédito Privado (“Fundo Estocolmo”) solicitou a inclusão na pauta da Assembleia a suspensão dos direitos políticos do acionista ESH Theta Fundo de Investimento Multimercado (“Fundo ESH”), na forma do artigo 120 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (“LSA”)[4]. Como fundamentação, o Fundo Estocolmo alegou que o Fundo ESH utilizou seus direitos políticos como acionista da Gafisa para tumultuar o curso natural dos negócios da companhia, em especial por meio de convocação de assembleias com matérias que visavam atingir a administração e outros acionistas da Gafisa, como a propositura de ações de responsabilização em nome da companhia.

Em resposta, o Fundo ESH submeteu à CVM pedido de interrupção de prazo de convocação da Assembleia[5], para que o órgão pudesse analisar a legalidade da pauta de deliberação para suspensão de seus direitos políticos na Gafisa. Como defesa, o Fundo ESH sustentou que o Fundo Estocolmo estaria buscando suprimir direitos que a Lei confere ao acionista, não com base em descumprimento das normas aplicáveis, mas por razões individuais, em especial às reiteradas tentativas de incluir como pauta nas assembleias da companhia o ajuizamento de ações, pela Gafisa, de responsabilização contra pessoas ligadas ao Fundo Estocolmo.

Em referência ao contexto acima, a CVM examinou o requerimento do Fundo ESH e decidiu que a Assembleia poderia seguir como inicialmente planejada, com exceção da pauta de deliberação para a suspensão dos direitos políticos do Fundo ESH, conforme incluída pelo Fundo Estocolmo. Com isso, em atenção à decisão da CVM, a administração da Gafisa conduziu a Assembleia da companhia com a exclusão da referida pauta[6].

De todo o exposto, o que é relevante extrair da decisão vai além da disputa entre dois acionistas. Casos como este não são usualmente levados à apreciação do órgão e, por isso, são de importância para compreendermos melhor o entendimento da CVM, que se baseou nos seguintes pilares: (a) ausência de fundamentação adequada; e (b) incompatibilidade do pedido com a finalidade da suspensão de direitos prevista na LSA.

Sobre o primeiro ponto, a CVM ressaltou que em nenhum momento restou evidenciado de forma clara qual seria a obrigação imposta pela lei ou pelo estatuto que o Fundo ESH estaria descumprindo. Pelo contrário, o Fundo Estocolmo e os documentos da administração da Gafisa apenas indicaram episódios que teriam afetado negativamente a companhia. Assim, ante a fundamentação deficitária, o principal requisito para a suspensão dos direitos com base no artigo 120 da LSA restou desatendido.

Ainda, a CVM destacou que a pauta incluída pelo Fundo Estocolmo viola a lógica e finalidade da suspensão de direitos políticos. Isto porque o pleito do Fundo Estocolmo, além de não indicar descumprimento à Lei ou estatuto, foi alicerçado em ocorrências passadas cujos efeitos já cessaram. Dessa forma, caso fosse deferida, a suspensão de direitos poderia viger por tempo indeterminado, o que é incompatível com o propósito da LSA e a melhor interpretação da CVM, já que a sanção prevista no artigo 120 deve cessar assim que o descumprimento que a causou seja sanado.

Já o segundo fundamento adotado pela CVM, foi no sentido de que o Fundo Estocolmo estaria buscando resolver uma disputa entre acionistas por meio de mecanismo societário previsto para proteger os interesses das companhias. Ademais, a inadequação do pedido se torna mais clara quando é considerada a severidade que carrega a suspensão do direito a voto de um acionista, em outras palavras, suprimir sua voz na tomada de decisão de uma sociedade. A este respeito, há precedentes da própria CVM[7] e de câmara especializada do Tribunal de Justiça de São Paulo[8] que ecoam a posição adotada pela SEP.

Por fim, além de concluir pela ilegalidade da pauta para suspensão de direitos pretendida pelo Fundo Estocolmo, a CVM também registrou a existência de acionistas engajados em questionar e movimentar a administração e a governança de companhias aberta como elemento central para o bom funcionamento do mercado de capitais.

Em conclusão, a suspensão de direitos de acionistas com base no artigo 120 da LSA sempre deve ser usada com cautela máxima e com a fundamentação adequada, o que não foi verificado pela CVM no caso em estudo.

 

 

[1] Parecer Técnico nº 31/2023-CVM/SEP/GEA-3. Acesso pelo link: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/2023/20230425/2848_23.pdf

[2] Setor responsável por supervisionar a observância de normas sobre atividades relacionadas aos registros e a divulgação de informações pelas companhias abertas.

[3] Acesso pelo link: https://conteudo.cvm.gov.br/decisoes/2023/20230425_R1.html

[4] Art. 120. A assembléia-geral poderá suspender o exercício dos direitos do acionista que deixar de cumprir obrigação imposta pela lei ou pelo estatuto, cessando a suspensão logo que cumprida a obrigação.

[5] Art. 124. A convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes, no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e, no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria. (…)
§ 5o A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, mediante decisão fundamentada de seu Colegiado, a pedido de qualquer acionista, e ouvida a companhia: (…)
II – interromper, por até 15 (quinze) dias, o curso do prazo de antecedência da convocação de assembléia-geral extraordinária de companhia aberta, a fim de conhecer e analisar as propostas a serem submetidas à assembléia e, se for o caso, informar à companhia, até o término da interrupção, as razões pelas quais entende que a deliberação proposta à assembléia viola dispositivos legais ou regulamentares.

[6] Acesso pelo link: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/80a797b3-65be-44e0-9654-344e2f842bc1/1e40ddbc-c707-b445-c756-b8eb730e1e62?origin=1

[7] Processo CVM nº 19957.004743/2016-53

[8] “Ressalta-se, todavia, aqui, que não é proposta discussão atinente ao descumprimento de deveres de acionista, mas, isso sim, pretende-se revolver questões atinentes à aquisição das ações pelo recorrido e seus irmãos, a partir de doação feita por seu genitor. Não há uma impugnação específica e que indique ter sido praticado um ato em sentido contrário aos interesses da sociedade ou, até mesmo, ter ocorrido um inadimplemento.”
(TJSP, 1 ª Câm. Dir. Empr., Agr. Instr. 2137845-50.2017.8.26.0000, Rei. Des. Fortes Barbosa, j. 20.7.2018)

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