MP da Liberdade Econômica: desconsideração de personalidade jurídica e a segurança da atividade empresarial

A desconsideração da personalidade jurídica é definida como o “ato, de natureza judicial ou administrativa que restringe a separação patrimonial, permitindo que o efeito de certas e determinadas obrigações, originalmente imputadas à pessoa jurídica, possam alcançar os seus sócios ou associados (modalidade direta) ou, inversamente, que o efeito de certas e determinadas obrigações imputadas aos sócios ou associados possam atingir a pessoa jurídica que integram (modalidade inversa)[1]”. A inserção da desconsideração da personalidade jurídica no artigo 50 do Código Civil de 2002 e sua respectiva mudança trazida na MP 881/19, também conhecida como MP da Liberdade Econômica, vieram de entendimento jurisprudencial e doutrinário[2] que se consolidaram ao longo de sua aplicação. Ou seja, apesar de não representarem efetiva inovação na aplicação do dispositivo, as mudanças contribuem para uma maior segurança jurídica na condução da atividade empresarial.

Além de estar presente no artigo 50 do Código Civil, a desconsideração da personalidade jurídica, bem como outros institutos similares de dilatação da responsabilidade de sócios, associados ou administradores, pode ser encontrada em diversos instrumentos normativos, a saber: no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), no artigo 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), no artigo 18 §3º da Lei 9.847/99 (lei que dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis), no artigo 23 do Decreto 2.953/99 (dispõe sobre o procedimento administrativo para aplicação de penalidades por infrações cometidas nas atividades relativas à indústria do petróleo e ao abastecimento nacional de combustíveis), no artigo 34 da Lei 12.529/11 (Lei do Sistema Brasileiro de Concorrência), no artigo 14 da Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), no artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, nos artigos 124 e 125 do Código Tributário Nacional e no artigo 82 da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/05).

Apesar da existência destas outras possibilidades normativas, a MP da Liberdade Econômica afetou somente a redação do artigo 50 do Código Civil e do artigo 82 da Lei de Recuperação Judicial e de Falência. Respectivamente, foram introduzidos cinco parágrafos que delimitam o escopo do emprego da desconsideração da personalidade jurídica e consolidam o entendimento de que a mera existência de grupos econômicos não basta para a aplicação do instituto[3]. Ainda, foi inserido o artigo 82-A para delimitar que a extensão dos efeitos da falência para a responsabilização de administrador só será admitida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica do artigo 50 do Código Civil. Ademais, foi positiva a iniciativa da MP 881/19 de delimitar que a mera existência de grupos econômicos não seja suficiente para a adoção da desconsideração da personalidade jurídica, já que tal ato era comumente utilizado pelos tribunais de forma equivocada e contra decisões jurisprudenciais consolidadas no mesmo sentido da nova redação do artigo 50 do Código Civil.

De caráter excepcional, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada em casos extremos, desde que observados os requisitos da nova redação, que tratou das hipóteses de desvio de finalidade e confusão patrimonial, sendo tal inclusão positiva para o ordenamento jurídico, pois restringe o escopo de destinação do instituto.

No entanto, cabe mencionar que a nova redação do caput do artigo 50 do Código Civil traz uma confusão semântica: ao prever que os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica devem ser estendidos aos sócios e administradores beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso, não foi seguida a lógica da interpretação dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil que tratam da obrigação civil de indenizar. Isso, pois, de acordo com a leitura conjunta desses artigos, quem causou o prejuízo e não quem foi beneficiado pelo prejuízo responde civilmente pela reparação de danos.

Ainda, apesar das introduções positivas acima mencionadas, nada foi mencionado a respeito das hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma vez que as delimitações introduzidas no Código Civil não se aplicam às trabalhistas. Os requisitos no âmbito trabalhista são muito mais abrangentes e afetam, de igual modo, a atividade empresarial, pois o instituto é usado recorrentemente em ações trabalhistas para afetar o grupo econômico e atingir o patrimônio de outras empresas do grupo. Vale ressaltar que, apesar da mudança realizada na Lei de Recuperação Judicial e Falência, as demais hipóteses de emprego da desconsideração da personalidade jurídica continuarão aplicáveis para as situações previstas nas respectivas legislações.

Com as alterações promovidas pela MP da Liberdade Econômica, foi repisado em lei jurisprudência já firmada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito dos requisitos para a utilização da desconsideração da personalidade jurídica, vez que 70% (setenta por cento) das instâncias inferiores não aplicavam o entendimento consolidado em jurisprudência[4].  Apesar de não serem mudanças inovadoras, garantem maior segurança jurídica à atividade empresarial.

[1] A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mai-06/direito-civil-atual-mp-liberdade-economica-mudou-codigo-civil. Acessado em 19/5/2019.

[2] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 25ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 2012; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 15ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2017; Comentários ao novo código civil: das pessoas (Arts. 1º a 78), volume I. Raphael de Barros Monteiro [et al;], coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira, 2ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 2012.

[3] Vide entendimento consolidado no enunciado 146 da III Jornada de Direito Civil e no enunciado 282 da IV Jornada de Direito Civil.

[4] Conforme dados disponibilizados por Gianluca Lorenzon, diretor federal de Desburocratização do Ministério da Economia, em entrevista concedida ao Valor Econômico em 17/5/2019, disponível em <https://www.valor.com.br/legislacao/6259733/governo-inclui-jurisprudencia-do-stj-sobre-confusao-patrimonial-em-mp>. Acessado em 19/5/2019.

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